"MAIOR É O QUE ESTÁ EM VÓS DO QUE O QUE ESTÁ NO MUNDO." (I JOÃO 4:4)

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

A Iluminação de Sakyamuni - 1/2

Masaharu Taniguchi


ATÉ ABRAÇAR A VIDA RELIGIOSA

Sakyamuni abandonou o palácio e buscou a vida religiosa para encontrar o caminho da extinção dos quatro sofrimentos: nascimento, envelhecimento, doença e morte. “Sofrimento do nascimento” são os sofrimentos pelos quais o homem passa por ter nascido e estar vivendo. São as dificuldades financeiras e outros problemas da vida. Não só os sofrimentos da vida humana, mas também todos os sofrimentos pelos quais passam durante a vida todos os seres vivos. 

Isso Sakyamuni percebeu quando passeava pelo jardim e viu um corvo – que na realidade era um ente celestial metamorfoseado – descer ao solo e alimentar-se de um verme. Vendo tal cena, Sakyamuni sentiu: “Como é doloroso viver!”. E desejou não viver mais num mundo de luta pela sobrevivência, onde uma ave não sobrevive sem devorar vermes; onde os vermes, devorados pelas aves, não podem sobreviver; enfim, num mundo tão cruel em que não há como viver sem que um devore o outro, tirando-lhe a vida. Supôs que devia existir um mundo diferente, onde reinasse a harmonia. Ele desejou sair à procura de um mundo em que todos se vivificam e se ajudam mutuamente. Achou que, no palácio onde vivia, não encontraria um mundo assim, de colaboração mútua. Mesmo diante de um saboroso banquete, certamente Sakyamuni considerava que muitos seres vivos eram sacrificados até que esses pratos ficassem prontos e fossem servidos. Ao ver um prato preparado com verduras e legumes, indagava quantas minhocas e quantos sapos foram mortos durante o cultivo dessas hortaliças, e, na hora do preparo, quantos insetos foram levados pela água e morreram na lavagem. E lá estava na mesa o resultado dessas lamentáveis matanças. Vivemos dependendo de tantos sacrifícios dolorosos. O próprio Sakyamuni não cometia nenhum morticínio, mas, considerando que não se manteria vivo se não comesse esses alimentos, ele achava que indiretamente estava cometendo matanças. Desde então, o desejo de fugir desse mundo cruel onde reinavam matanças não mais saiu do pensamento de Sakyamuni.

Antes disso, quando do seu nascimento, um fisiognomonista (profeta/vidente) dissera ao rei: “O príncipe tem fisionomia de Buda. Se ele se tornar rei, será um grande rei, que proporcionará verdadeira e permanente paz ao mundo. Porém, provavelmente ele não será rei e abandonará o palácio para abraçar a vida religiosa e tornar-se um Buda”. Por isso, o rei tomara todas as providências para que o príncipe não abandonasse o palácio; mandou decorar os aposentos com requintes de beleza, para que ele não visse nada que fosse mau ou feio, mas visse apenas a beleza, ouvisse apenas músicas maravilhosas, ingerisse somente alimentos saborosos, e pensasse que este mundo é belo e constituído somente de prazeres. E, quando Sakyamuni – Príncipe Siddhartha na época – passeava pelo jardim, estava sempre acompanhado de guardas. O passeio era feito num jardim impecavelmente limpo e sob segurança máxima, proibindo a entrada, no jardim, de qualquer pessoa do povo de aparência desagradável.

Apesar de todas essas precauções, o ente celestial metamorfoseado em corvo desceu diante do príncipe. Não houve como impedir, e ele acabou percebendo que existia um mundo cruel em que os seres se matavam e se devoravam mutuamente. Desde então, o príncipe vivia um tanto melancólico.

O rei, preocupado, achou que, se não proporcionasse mais diversão ao príncipe, este poderia abandonar o palácio. Tornou ainda mais belos os aposentos, vestiu lindas mulheres com roupas deslumbrantes, e promovia todas as noites banquetes com apresentações de danças e músicas. Mas o príncipe não se divertia. E disse novamente “Quero passear pelo jardim”. Certamente pensou que lá havia um mundo diferente, desconhecido, cujo segredo ele desejava descobrir.

Talvez também desta vez foram tomadas todas as precauções, cuidando para que ninguém, a não ser acompanhantes e guardas, estivessem no jardim; mas, também desta vez, o ser celestial metamorfoseado apareceu repentinamente diante do príncipe. E agora, em vez de corvo, estava disfarçado de homem muito idoso. Este, com o corpo magérrimo, só pele e osso, e o rosto feio e cheio de rugas, andava curvado, com muita dificuldade, agarrado a uma bengala. Até então, o príncipe só havia visto pessoas jovens e bonitas, e não sabia que o que estava diante era um homem idoso. E perguntou ao criado:

– “Que é isso?”. O criado respondeu: – “É um velho”.
– “E onde vive esse animal tão feio?”.
– “Ele não é um animal. Todas as pessoas quando envelhecem, acabam tornando-se desse jeito”.
 – “Todas as pessoas ficam assim?”.
– “Sim, Príncipe, todo ser humano, com o passar dos anos, acaba tornando-se velho.”

Ouvindo a resposta do criado, o príncipe ficou bastante chocado.

 – “Então, com o passar dos anos, todo homem torna-se desse jeito? Isso é triste demais.” – pensou. “Não haverá um meio de o ser humano evitar que a sua pele fique enrugada e o corpo todo encurvado, e manter-se sempre jovem, forte e bonito? É pavoroso que todo ser humano envelheça e tome esse aspecto. Não teria um meio de evitar que isso aconteça?" – esta passou a ser a preocupação do príncipe. E ele foi-se tornando ainda mais melancólico.

O palácio todo ficou em alvoroço. Se a melancolia persistisse, o príncipe poderia abandonar o palácio, como fora previsto anos atrás. Por isso pensaram que deveriam diverti-lo a qualquer custo. No seu aposento foram reunidas lindas mulheres, escolhidas a dedo, de todo o país; serviram banquetes deliciosos, apresentaram danças, tocaram harpas, enfim, apresentaram-lhe tudo quanto era diversão deste mundo; mas o príncipe não ficava feliz. Olhando para as belas mulheres, ele se lembrava de que elas também envelheceriam e tornar-se-iam feias como aquele velho que vira no jardim, e sua tristeza aprofundava-se ainda mais. Pensava num meio para evitar que o ser humano envelhecesse, e a tristeza e a melancolia aumentavam cada vez mais. Preocupado, o rei tentava consolar o filho, mas este manifestou o desejo de novamente passear ao ar livre.

O príncipe, então, saiu para passear num jardim impecavelmente limpo, sem uma só sujeira, sob severa guarda. Mas, apesar de todos os cuidados que foram tomados, encontrou caído no caminho um homem com aparência de leproso, coberto de chagas e todo extenuado. O príncipe nunca tinha visto um ser vivo com essa aparência. Seu corpo meio decomposto secretava pus sanguinolento. Vendo-o, indagou:
– “O que é aquilo?”.
 – “Aquilo se chama doente”.
– “E onde vive esse tal de doente?”.
– “Todo homem um dia torna-se doente” – respondeu o acompanhante.
O príncipe, que até então só conhecia seres humanos jovens de bela aparência, ficou profundamente triste ao saber que o homem não só envelhecia, mas também se tornava um disforme doente.
– “Que acontece depois de ficar doente?”.
– “Meu príncipe, todo ser humano acaba morrendo ao fim de uma doença.”

Calaram fundo no coração do príncipe as palavras todo ser humano”.

– “Então, todo ser humano envelhece, adoece e morre. E, enquanto vivo, permanece num mundo em que seus habitantes devoram-se uns aos outros, engalfinham-se, lutam uns contra os outros. Para que o ser humano nasce num mundo assim? Por mais bela que possa parecer uma pessoa, tal aparência é falsa. Acontecem matanças por trás dessa aparência de beleza. Matam-se, e o vencedor consome a carne, o sangue, os nutrientes do vencido para os dispor dentro do próprio organismo, e é esse corpo que as pessoas veem como belo físico. É uma falsidade o que vemos como beleza física. Esse é o homem, o mundo dos homens, um mundo miserável. E aquele que com muita dificuldade consegue sobreviver, acaba envelhecendo, fica com a pele toda enrugada, o corpo encurvado e, consumido pela doença, acaba morrendo. É inútil viver num mundo assim. Não haverá um meio de fugir deste mundo e viver num mundo eterno, onde não se envelhece, em que não há lutas e matanças?”. Toda vez que pensava assim, o coração do príncipe tornava-se ainda mais melancólico.

FINALMENTE, ABANDONA O PALÁCIO

O rei, cada vez mais preocupado, e desejando consolar o filho, rodeou-o de mulheres ainda mais belas, mas este não conseguia ver a beleza das moças como beleza pura e simples. Parecia ver a desgraça, a luta repugnante, a lamentável tragédia por trás da bonita forma delas. 

Porém, chegara a hora de finalmente partir e abraçar a vida religiosa. Por uma força sobrenatural dos entes celestiais, as belas moças que tocavam instrumentos musicais repentinamente caíram em sono profundo, como que anestesiadas. E que cena horrorosa elas apresentavam! Sua pele, que parecia linda, agora estava flácida, e babavam de boca aberta como um demente. “É esta a verdadeira natureza do ser humano. O que parecia beleza é uma falsidade. Debaixo dessa pele, existem repugnantes músculos encharcados de sangue. Debaixo deles, há vísceras contendo horrendos materiais fecais e outras imundícies...” – pensou o príncipe.

Finalmente, o príncipe tomou a decisão. Aproveitou que todos os seguranças estavam adormecidos, e abandonou o palácio. Inicialmente, procurou os ascetas brâmanes Arada Kalama e Udraka Ramaputra para, sob suas orientações, realizar vários tipos de ascetismo, na busca do caminho para solucionar os quatro sofrimentos: nascimento, envelhecimento, doença e morte. “O homem veio matando variados seres vivos para se alimentar; vive infligindo sofrimentos aos semelhantes e demais seres vivos. Portanto, sem passar por sofrimento, não poderá purificar os carmas negativos que veio acumulando” – imagino que seja este o pensamento que ocorre naturalmente a qualquer pessoa. Mas nenhum dos ascetas pôde indicar para Siddhartha o caminho para purificar verdadeiramente a alma. Ele, então, agradeceu-lhes e partiu. 

Chegou à floresta de Uruvela, onde praticou ascetismo durante seis anos, quase sem se alimentar. Procurou viver de modo a tirar o menos possível a vida de outros seres vivos, a apropriar-se de coisas alheias o menos possível, e a causar transtorno aos outros o menos possível. Mas não havia outra forma de viver senão tirando algo dos outros. Comer verdura significava matar a verdura, e isso era lastimável. Mas, se não comesse nada, estaria matando a si próprio. Também ele era um ser vivo, e tirar a própria vida também seria cometer pecado de matar. Não podia morrer nem viver. Siddhartha mal se mantinha vivo, comendo o mínimo, passando fome e sofrendo. Tornou-se pele e osso, em estado deplorável, mas não conseguiu o caminho da solução. Mortificou-se durante seis anos praticando ascese e, no final, não encontrando o caminho para o despertar, percebeu que “ascetismo não leva à iluminação”. Então, saiu do bosque do ascetismo e desceu ao sopé da montanha, onde corre um pequeno rio chamado Nairanjana, e ali se banhou, purificando-se da crosta de sujeira que se acumulara em seu corpo durante os seis anos de ascese.

Às vezes, vemos em templos budistas uma imagem de Sakyamuni praticando rigorosa ascese e ficamos impressionados com seu corpo definhado e sua expressão de sofrimento. Dizem que esse era o aspecto de Sakyamuni quando ele desceu do monte, na madrugada do dia 8 de dezembro, e foi banhar-se no rio Nairanjana. Ele estava na margem desse rio, quando uma jovem brâmane aproximou-se e lhe ofereceu um prato de papa de arroz cozido com leite. Até esse momento, Sakyamuni considerava pecaminoso consumir alimentos como aquele. Ele pensava: “Os cereais também estão vivos, e comê-los significa tirar-lhes a vida. O leite de vaca é alimento dos bezerrinhos; ao toma-lo, o ser humano está roubando o alimento deles. A vida do homem neste mundo consiste em obter alimentos para si roubando e matando outros seres vivos”. Ele vivia atormentado por esse pensamento. Mas naquele instante, por alguma razão, ele conseguiu comer, sem nenhum sentimento de culpa, a papa de arroz cozido com leite, que lhe foi oferecida pela jovem brâmane, e o seu coração se encheu de gratidão.

MUDANÇA DE VISÃO

Percebemos, nesse episódio, a mudança repentina da postura mental de Sakyamuni. Naquele instante, ele viu um mundo diferente daquele que enxergara até então. Do ponto de vista físico, ele comeu um alimento material, feito de arroz e leite. Mas a sua mente não se ateve à matéria, e ele aceitou, com profunda gratidão, o nutriente espiritual contido no alimento oferecido: o amor e a bondade da jovem brâmane. Antes, quando ele observava o mundo à sua volta sob o ponto de vista material, parecia-lhe que o ser humano saqueava e matava outros seres para obter sustento para si próprio. Naquele momento, diante dele não havia matança nem saque. Com o coração repleto de gratidão, pensou: “Essa jovem brâmane, desejando vivificar-me, veio-me oferecer espontaneamente um prato de papa de arroz cozido com leite, sem que eu o pedisse. Eu próprio não produzi cereais nem fabriquei o leite. No entanto, o grande amor de Deus, que abençoa e vivifica todos os seres e coisas do Universo, chegou até mim por meio de várias pessoas e manifestou-se sob a forma deste prato de comida. Louvado seja Deus!”. Alcançando o despertar espiritual, Sakyamuni percebeu que este mundo, que antes lhe parecia um palco de matanças mútuas dos seres vivos, era, na verdade, um mundo onde todos os seres vivificam uns aos outros.
Cont...



Do livro “A Verdade da Vida, vol. 39”, pp. 37-46

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